A preocupação com a “mancha” na família faz com que pais se recusem a acolher filhos que cometem atos infracionais – como são chamados os crimes cometidos por crianças e adolescentes -, afirma a psicóloga Lisiane Thompson Flores. No Amazonas, uma ONG atua no acolhimento desses jovens.
“Geralmente, os jovens que cometem atos infracionais vêm de lares desfeitos. (…) Se a gente olhar o histórico da família, ela nunca quis essa criança. Não foi uma criança desejada. [Eles pensam:] ‘Por isso, que eu não preciso e não vou lutar por ela’”, disse Lisiane, que também é professora universitária. Ela é especialista em terapia psicanalítica de criança e adolescente.
“Essa desestruturação familiar desestrutura emocionalmente eles. Desestrutura o ego. É como se esse jovem estivesse atrapalhado. ‘E agora? Eu não tenho pai, eu não tenho mãe. O que vai ser de mim?’ Vem um sentimento de vazio, um sentimento de abandono. Quando ele vai para a rua com os amigos ele se sente acolhido”, completou Lisiane.
Quando cometem atos infracionais, os adolescentes são encaminhados para uma UIP (Unidade de Internação Provisória). Eles ficam lá até que a justiça decida se eles cumprirão semiliberdade, liberdade assistida ou prestação de serviços à comunidade.
“Ele tem que passar esse período para entender o que aconteceu. Ele sai da sociedade e vai para um sistema onde ele vai ter os seus direitos limitados. Ele não vai poder sair até que o juiz possa analisar o caso dele e julgar qual será o cumprimento da sua medida, que pode ir de seis meses a um ano”, disse Andreza Souza, secretária executiva de Proteção a Crianças e Adolescentes.
Na UIP, o jovem infrator pode ficar no máximo 45 dias, que é o tempo que o juiz tem para analisar o caso.
“A maioria são adolescentes que não chegam tranquilos. Às vezes, a gente consegue identificar problemas mentais, vários problemas na família. É um momento de adaptação. Nesse momento, a gente tem cuidado de ver o estado de saúde, como ele chegou, faz uma anamnese (entrevista feita pelo profissional de saúde) de todo o histórico do processo dele, do que ele consegue falar. É um momento realmente de ele entender o que vai ser o sistema”, disse Andreza Souza.
Após essa fase, se o jovem infrator tiver que ser internado, existem quatro centros socioeducativos no Amazonas.
O Centro Socioeducativo Senador Raimundo Parente recebe rapazes de 12 a 15 anos e o Centro Socioeducativo Dagmar Feitoza, de 16 a 18 anos. Há também o Centro Socioeducativo de Internação Feminina.
Nesses lugares, os jovens apreendidos ficam de seis meses a um ano. Eles são acompanhados pelos socioeducadores – como são chamados os profissionais de saúde que auxiliam no tratamento deles.
O Amazonas também tem o Centro Socioeducativo de Semiliberdade Masculino. “É aquele que ele vai para casa nos finais de semana. Ele vai para a escola, cumpre as atividades, mas passa o dia lá na unidade de semiliberdade com acompanhamento, com orientação, e cumprindo com todos os seus deveres da casa”, disse Andreza Souza.
A secretária executiva relata que nesses centros socioeducativos houve um tempo em que os jovens não poderiam nem usar colheres para se alimentar, pois o objeto era transformado em arma.
“Já tem um certo período de tempo que eles podem comer com colher. E aí você vai dizer: ‘Isso não era possível?’. Não era. Tudo na mão de um adolescente que chega em um estado agressivo em um outro contexto poderia e viraria arma. A gente tem até várias armas que eles criavam com a colher e com a escova de dente. Hoje em dia isso não acontece”, disse Andreza.
Rejeição
O período após a passagem pelos centros socioeducativos também é um desafio. Alguns jovens são rejeitados pela família e não têm para onde ir.
Lisiane Flores explica que essa rejeição está associada a uma preocupação da família com a “mancha” que o filho que cometeu atos infracionais pode representar.
“Quando eles cometem um ato infracional, a família não quer de volta porque não quer uma mancha na família. Esse filho representa a ‘doença’ da família. E aí ela recusa, se esconde. ‘Eu não quero esse filho, não quero essa pessoa’. Aí novamente eles se sentem abandonados porque eles acham que a família vai acolher e eles vão tentar mudar. ‘Eu vou melhorar’. Aí a família não acolhe. Aí eles voltam de novo para o crime”, disse Lisiane Flores.
“O sentimento que existe nele e na família é de abandono. A família abandona porque não quer ser marcada por. Na verdade, se a gente olhar o histórico da família, essa família nunca quis essa criança. Não foi uma criança desejada. Por isso que eu não preciso e não vou lutar por ela”, completou a psicóloga.
A secretária executiva Andreza Souza afirma que ONGs atuam no acolhimento de adolescentes que cometem atos infracionais e que não tem para onde ir.
“Existe uma parceria com uma ONG que acolhe as pessoas que estão em estado de vulnerabilidade. É o projeto Vida. Com essa parceria, a gente acaba encaminhando esses egressos para essa atividade não governamental que faz o acolhimento desses jovens”, afirmou a secretária.
Em Manaus, o Saica (Saica (Serviço de Acolhimento Institucional de Crianças e de Adolescente) é o único abrigo governamental da capital amazonense, mas ele só recebe crianças e adolescentes com medidas de proteção ou em condição de abandono.
“Não tem nada a ver com ato infracional”, disse Carlos César da Silva Ferreira, diretor da instituição. Ele é psicólogo pós-graduado em Dependência Química e Neuropsicologia.
“Por exemplo, as pessoas dizem que uma criança está sendo ‘aviãozinho’ [que faz entrega de droga]. A família não consegue segurar. Prometem matar a criança. Alguém contacta o Conselho Tutelar. O conselho vem e acompanha, vai até a família e ela diz: ‘olha, não aguento. Eles estão querendo matar o filho’. Neste caso, ele leva para a medida protetiva. Não está apreendendo a criança. Ele está tirando ela do risco que ela está correndo lá. E vai para o Saica”, disse Carlos César.
Em outubro do ano passado, a Justiça informou o MP-AM (Ministério Público do Amazonas) sobre a situação de três adolescentes que haviam cometido atos infracionais (furto, estupro, lesão corporal e dano) e que estavam abrigados no Saica. Conforme a juíza Rebeca de Mendonça Lima, da Infância e da Juventude Cível, eles não atendiam o perfil adotado pela instituição de acolhimento.
“Temos um juizado que é de infância (Cível) e temos um juizado infracional (seria outra situação). Então, o que acontece muitas vezes é que um adolescente sai do ato infracional e o juizado de atos infracionais quer mandar para a medida protetiva porque a família não quer ou então ele não tem família. Está havendo impasse entre justiça cível com de ato infracional”, disse Carlos César.
O diretor da instituição aponta os problemas em acolher os jovens que cometem atos infracionais.
“A gente sabe que não dá para misturar porque menino que vem do ato infracional é muito mais vivido, tem outra experiência. Você vai colocar ele com crianças que chegaram no abrigo simplesmente porque o pai brigou com a mãe, deu uma confusão lá, não sabia pra quem ia, naquela hora não tinha como resolver, foram na Depca (Delegacia de Proteção Criança), e ela encaminha para o Saica”, disse Carlos César.
“Então, esse jovem, essa criança não tem essa vivência do mundo, do tráfico, da prostituição, muitas vezes, não tem essa vivência. Nesse caso, quando eu falo que não tem perfil, a gente recebe meninos e meninas de todas as violações de direito que você imaginar. São crianças que às vezes estão na rua e se envolveram com a prostituição, se envolveram com a droga, e não tem ninguém, muitas vezes a família não quer também e acaba indo para uma medida protetiva. A gente vai tentar proteger essa criança. Esse impasse não é uma questão nossa, impasse nosso. A justiça que ainda está estudando essa ideia para ver como é que faz”, afirma o diretor do Saica.
“É claro que os meninos de atos infracionais nessa situação também precisam de proteção, mas aí até que ponto a gente colocar com outras crianças que não tem essas vivências? Geralmente, eu sempre digo até para o próprio juizado: é uma questão de tempo quando entra um adolescente do ato infracional, questão de tempo para ele se sobrepor aos outros. Ele se sobrepõe porque ele tem uma vivência que o outro… então, ele acaba amedrontando o outro por aquilo que ele fez”, completou Carlos César.
O diretor do Saica afirma que, no caso de jovens que cometem atos infracionais, os profissionais de saúde são orientados a não expor a situação em que se envolveram, mas os próprios adolescentes e jovens revelam. “É uma forma de dizer: ‘não, isso aqui é minha uma forma de defesa. Então, se eu fiz alguma coisa, não tem porque eu não dizer porque de repente vou ter o respeito dos outros’”, disse Carlos César.
No Saica, a criança e o adolescente fica em média três meses. O serviço busca restabelecer o vínculo do adolescente com a família. “Ou a gente reencontra a família e coloca na família ou a gente transfere para outro abrigo que são nossos parceiros. A gente faz contato com eles. Tem alguns adolescentes que demoram um pouco mais”, afirmou Carlos César.
Fonte: Amazonas Atual – Nenhuma violação de direitos autorais pretendida